Por Diego Oliveira
O primeiro passo da vida é decidir o que queremos. E o primeiro passo é sempre o mais difícil, os demais, já ficam um pouco mais fáceis. Foi assim, quando em setembro de 1842 embarquei rumo a França, para comerciar e tentar a vida por lá. Jamais podia imaginar a extraordinária sucessão de acontecimentos que me estavam reservados. Atracar em Le Havre de Grâce e ver a simplicidade daquele povo e a simpatia local foram os meus primeiros espantos em terras estrangeiras. Mas o meu futuro era em outro lugar.
Paris foi o lugar aonde o homem resolveu brincar de ser Deus. Construiu a mais bela e a mais augusta cidade já feita pela mão do homem. As ruas possuem traços sublimes e impactantes, e não podemos nos afastar das impressões que elas causam nas nossas mentes. Muita efervescência de sensações, de pessoas em uma ebulição atabalhoada, muita nobreza e muita gente simplória. Aqueles sons que nos roubam a atenção, os perfumes que nos assaltam como piratas, as guloseimas das vitrines que furtam nossa saciedade... Havia beleza até nas infindas obras, de especificidades engenhosamente indescritíveis.
A vida tem seu instinto próprio, ela sabe como encontrar o caminho dos prazeres, qual rio que busca a foz no mar levando consigo um irresistível desejo de plenitude e imensidão. No silêncio das imagens que me vêm à mente, guardo os vigorosos jardins e as mulheres. Sim, as mulheres. Muitas, tantas... Os adjetivos são ínfimos ante a suprema obra-prima da criação. Em tudo, aos vinte anos, os prazeres requintados da imaginação me levam a crer que os jardins são reles adornos da paisagem a engrandecer a moldura que é a vida, retratada na graça da mulher.
Os escritores usam de inúmeros artifícios literários que pareça capaz de dar a maior intensidade de vida possível a seus personagens. Mas o que relato agora, é a mais suprimida versão do torpor doce, quente e lancinante que tive em meus primeiros momentos franceses.
Ser estrangeiro nos dá a avidez de conhecer o que há nas paragens locais. Já estabelecido em um cômodo velho e úmido, no rés-do-chão de um boticário em Montreuil, fui rodar pela localidade. O incômodo causado pelos deserdados da prosperidade e pelos vagabundos isoladamente só se vê suplantado pelo medo deles em multidão. Era uma imunda, mas disciplinada corja de esfomeados e moribundos.
Em tal número podiam se contar as crianças. Na minha breve jornada até a Place de la Concorde, vi as mais diversas criaturinhas. As mais curiosas e intrigantes andavam sempre em turmas. Pequenos de camisas sujas e calças cujas as pernas, crescidas há algum tempo, não mais abrigava em seu tecido. Eram tão numerosos quanto aos piolhos, ou os tijolos, ou talvez as madeiras tortas que estruturavam prédios ou devo chamar de casas... Não sei.
Chego à praça para contemplar a majestosa arquitetura, além de ver o monolito vertical, do obelisco de Luxor, que deixou de marcar dos domínios do Faraó Egípcio, para exaltar os feitos do reino no oriente. E absorto na minha estupefação, vejo um casal. Talvez estivessem praticando o ato da contemplação, assim como eu. Mas foi aí que me atentei aos detalhes.
Não resisti a cobiça. A jovem mulher era naturalmente limitada pela timidez de um meio sorriso, mas extremamente maravilhosa sob um parasol vitoriano rendado, de haste levemente polida e arqueada, pousado por sobre o ombro. Um gorro com aba larga de cetim, e uma fita azul para combinar com o vestido. Não usava véu, nem luvas. Seu penteado preso, denunciava um longo cabelo de anéis louros, quase avermelhados e um rosto alvo, sadio, marcante, firme e um tanto lúdico. O cavalheiro que a tinha, devia ter muita sorte, ou seria mais um dos burgueses que podiam comprar o mais opulento dos exemplares desta estirpe que já vi na vida.
Em minha observação, cheguei a pensar por conta da forma em que os dois evoluíam na marcha lenta do passeio, que a jovem mulher sofria verdadeiramente. O nobre da cartola, definitivamente a tinha por posse, e não a fazia feliz. Estava certo disso. Talvez a estivesse vendo pela primeira e a última vez na vida. Mas sua expressão não se regalava. Com o mesmo ar altivo e jocoso me retribuiu o olhar.
Naquele momento, tinha a opção de manter minha contemplação, ou ir em busca de mais daquela jovem mulher. Saber de sua vida, onde vivia, como estava. Segui-la de fato. Talvez minha inquietação por ela pudesse passar em algum momento, mas era uma energia que me consumia o ser e vibrava na alma. Estava provando dos sabores dessas casualidades da vida que nos transcendem deste mundo material e egoísta. Ou estaria eu, feito escravo do desejo e do egoísmo lhe furtar do matrimônio?
Não conheço muitos homens cuja coragem e a audácia culminasse na atitude que tomei. Enquanto os guardas dos arcanos do coração nos impedem de chegar a seus críticos de existência íntima, cuja verdadeira dimensão, caráter e moral nunca pode ser bem conhecido, fiz algo que em nada causa demérito ao que fazem em paredes internas de um sanatório mental.
Abordei o casal. Ela era ainda mais perfeita e viçosa quando vista a dois palmos de distância. Perguntei ao nobre cavalheiro se havia um lugar ali chamado: Jardin des Tuileries. Logo, o homem, que me pareceu um pouco mais velho de quando o observava, notou meu jeitão inglês. Quando ele se virou para me indicar a direção, entreguei à dama um papel: “Convide-me ao Jardim. Quero tê-la”.
De modo muito cortês, disse que estava a caminhar com a irmã naquela direção. Sem nunca ter me visto, ele me convidara para os honrar com a singela companhia onde retribuiria a gentileza com uma breve apresentação do lugar. A jovem mulher apenas sorriu suavemente, corou pudibunda e guardou meu bilhete na palma de sua mão. A mesma pequena mão que passou a segurar o parasol.
Restara, acontecido isso, sustentar e manter alguma cordialidade com ambos. Iria suceder nas investidas até conseguir o que tanto queria. Sabia que tinha despertado algo na jovem mulher. Talvez estes tempos de paz nos levem a frutificar alguma relação. Ela não me rechaçou. Talvez esteja buscando algum consolo para seus males. E nessa ânsia de desejo, muitas vezes nos damos conta que podemos alterar os termos fiéis de nossa índole, e violar leis para o benefício de nossos prazeres.
Vender ideias também pode fazer parte desse jogo que, volta e meia, chamamos de paixão. O dia está só começando, e vamos ver o que este novo mundo fará por mim.
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