Apreciar a literatura é, muitas vezes, caminhar por sendas que nos levam a palcos inóspitos e até incompreensíveis. Conhecer um pouco mais da literatura portuguesa contemporânea, de certo, têm trazido a mim gratas surpresas: como as obras de Saramago, de Agustina Bessa-Luís, de Teolinda Gersão, entre outras. Mas o mesmo, não posso dizer ao primeiro livro que li (e reli), de um dos autores portugueses mais premiados dos últimos tempos: António Lobo Antunes.
Faço essa crítica com profundo pesar, mas parto do princípio da imparcialidade jornalística, da publicidade e da liberdade de expressão. Mesmo que eu fosse patrocinado por editoras, autores, ou seja lá quem for, escreveria as observações que redigirei a seguir.
Mas ressalvo que lerei mais livros de António Lobo Antunes, pois um ganhador do Prêmio Camões é digno de uma observação mais apurada.
Sempre me perguntam que tipo de histórias eu gosto de ler ou de contar. E eu acho que temos nos livros, histórias e personagens que tiveram sonhos grandes e que conseguiram, ou não, concretizá-los. A arte de contar histórias, seja pelas artes ou pelo jornalismo, é o que amo fazer. De certo, esta é a única profissão que nos permite celebrar uma vida em todos os seus aspectos, inclusive no que há além dela: fantasias, sonhos, devaneios, realidades, guerras, dores, ilusões, romances, comédias, nascimentos, mortes, vitórias e fracassos.
Contar histórias é a forma que encontramos para registrar a memória e evolução do pensamento humano. Mas tem cada história tão desnecessária...
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Comecei a ler Memória de Elefante em 2013, mas parei no segundo ou terceiro capítulo, não sei bem porquê. Achei muito chato. Daí, o livro ficou na minha cabeceira, sossegado, e chegou a me acompanhar em muitas viagens, na esperança de ser lido. Até que há um tempo atrás, o (re)li do início ao fim. Foi um duro embate, pois trata-se de uma obra de estréia do autor.
A história, publicada originalmente em 1979, toma lugar ao longo de um dia e uma noite de crise existencial de um psiquiatra português, assim como Lobo Antunes, desde o início da sua jornada de trabalho, até à alvorada do dia seguinte.
A narrativa tece o perfil de um homem angustiado por uma série de fracassos pessoais: a mal explicada separação da sua mulher e duas filhas, a frustração profissional no exercício da psiquiatria no mesmo hospital onde trabalhara o seu pai, a solidão e o desespero, o jogo como fuga à realidade, os fantasmas do passado (da guerra e da infância), a busca de uma voz ideal para a sua escrita.
Ou, em poucas palavras, a terrível procura de si mesmo e de seu lugar no mundo.
O próprio autor revela que começara a escrever este romance quando ainda estava casado com sua primeira esposa. Mas só o concluiu quando o casamento já tinha acabado. Portanto, a obra tornou-se uma espécie de autobiografia deste período litigioso.
A "sofrência" da história, navega errante entre expectativas, fatos e desilusões. As projeções do futuro e as contradições que afligem o narrador, ambos, pelo menos, resultam em uma iluminação e um acalanto à noite escura e fria da alma do protagonista, em um texto cujas virtudes catárticas, visa a libertação de suas obsessões ou de sua própria paranoia.
A obra é incomum, de leitura nada fácil, exigindo atenção e extrema dedicação a cada frase. Emprega o discurso na terceira pessoa, mas há fugas no roteiro para o relato na primeira pessoa. Todavia, há um enredo muito denso e sisudo. E tudo isso, envolto no caráter perturbador e autobiográfico da obra.
A mescla de mágoas versa a narrativa de um homem sufocado pela própria existência, que teve de passar pela Guerra Colonial que sua pátria travava em Angola, nos anos 1970.
Um detalhe importante da história é a indisponibilidade psicológica deste psiquiatra para atender seus pacientes, a ironia desrespeitosa com que ele observa o comportamento dos outros ao seu redor, e ainda (para terminar o seu fatídico dia), a busca dos afetos pueris, numa casa de jogos, onde se deixa assediar por uma mulher com o dobro da sua idade, com as mesmas carências, e com quem acaba por passar a noite.
Nessa circunstância, o livro vai criando uma tensão à volta das indagações interiores do psiquiatra que se esgota nos dois capítulos finais. Além do vazio indignante, o fim do livro nos deixa nuances (quase imperceptíveis) barrocas, ultrarrealistas e até metafóricas do aspecto psicológico e afetivo de uma narrativa. É uma espécie de exorcismo de quem, de fato, deseja escrever por ofício.
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António Lobo Antunes e seus companheiro: o cigarro e os livros - 2015 - David Clifford/4SEE |
Se posso denotar algum valor à obra, isso não se fará na história que ela conta. É provável que em sua publicações posteriores, Lobo Antunes consiga fechar sua ideia intrínseca, sua proposta de estilo literário. Isso é muito raro e peculiar em alguns escritores.
O próprio autor revelou, em entrevistas recentes, que 2020 será o último ano em que publicará, fechando a sua literatura editada em cerca de trinta títulos (excluindo as crônicas), afirmando ainda que todos esses livros, desde Memória de Elefante, constituem um todo.
Tudo isso me faz concluir, apesar de não ter gostado do livro em nada, que Lobo Antunes cria, à sua maneira, uma forma muito estranha de se contar histórias. E por mais que o autor tenha vindo de uma super família tradicional portuguesa (e multi-talentosa) que se espalhou pelo mundo, algo parecido com os "Buarque de Hollanda" no Brasil, é notório os efeitos devastadores que as guerras, as ditaduras e, sobretudo, a melancolia fazem com o indivíduo, suas gerações e com uma sociedade.
Forte Abraço a todos, neste finzinho de carnaval!
E bora ler e foliar, meu povo! ;) ✌ 😎