sábado, 7 de maio de 2016

Nossas Autorias #008 - Não Se Cegue na Culpa, Ame de Coração!

 
 
 
Por Diego Oliveira
 
 
Viver na miséria não é nada fácil. Isso, todo mundo sabe. Mas imagine como é difícil viver nas sombras... A miséria da qual me refiro, não é só a falta de dinheiro, ou de recursos, ou de poder, tampouco o de desfrutar dos prazeres da boa vida. Durante o tempo que vivi no Rio de Janeiro, pensei que já tinha provado um bom bocado de sofrimento nessa minha jornada. Mas nada se compara à história que tive a oportunidade de conhecer.

Em um desses dias quentes, onde tudo nos convida a curtir um pouco da vida, naquela que é referida como a mais maravilhosa das cidades do mundo, lá estava eu: indo à batalha, em busca do pão de cada dia. Era o fito de me deslocar em trem lotado, rumo à Central do Brasil. E eu, que saí da capital paulista, para morar com uma tia e tentar a sorte de uma vida nova no Rio, não me conformava com uma desilusão amorosa que me levara a pedir "exílio" e recomeçar tudo do zero. Mas isso era mais outro devaneio meu...
 
Mas foi nesse dia que me deparei com algo, no mínimo, inusitado. Em meio aos solavancos da composição férrea, imerso em meus pensamentos, sonhos e desafios, ouvi a voz barítona e ressonante, mesclada com estalar metálicos sequentes. Dentre aquela multidão, que assim como eu, marchava para mais um dia de trabalho, vi um vendedor de balas. Poderia ser mais um dos muitos ambulantes, que ganham a vida negociando bugigangas, de vagão em vagão... De estação em estação... Mas, neste caso, para a minha total surpresa, o nobre mascate dos tempos modernos e urbanos portava, além de sua mochila e de sua caixa de balas, uma bengala. Eu estava atônito: o camelô era cego!

Ele vendia seus doces e, a cada abordagem contava com a compaixão do público, seus propensos clientes, para não ser ludibriado. Por mais desonesto que possa ser um povo, na minha ingênua inocência paulistana, jamais poderia pensar que alguém poderia enganar um cego. E realmente: o cego ia vendendo e ia faturando, sem maiores problemas, principalmente na hora de passar o troco àqueles que compravam seus produtos.
 
Pressupondo mil coisas, nenhuma delas legais, achei muito estranha a habilidade daquele vendedor e sua curiosa confiança em negociar suas mercadorias. Aquilo, só poderia ser uma mega sacada de uma mente inescrupulosa, que se passando por deficiente visual, enganava aquele povo simples e solidário, que se condoía com a triste e bizarra cena de superação do ser humano, e enchia o bolso do camelô de dinheiro.

Meu pseudo faro jornalístico, recém-saído da universidade, e a imensa curiosidade que cultivo desde menino, resultaram no inevitável: segui, observei e acompanhei nosso intrépido mercador, que tinha as trevas por companhia, saltando de trem em trem, na capital fluminense.
 
Até hoje não consigo concluir se aqueles trinta minutos que perdi em minha sórdida investigação foram os mais bem gastos de toda a minha vida ou os mais desperdiçados. E na realidade, nem sei se foi perda de tempo. Mas realmente consegui definir que o cego era cego mesmo.
 
Me senti péssimo por ter duvidado da índole do rapaz, que frente às adversidades obscuras, das mais severas que podem existir, angariava digna e honestamente os seus trocados, enquanto muitos... Não compensa nem comentar.

Trabalhei impaciente na minha mesa aquele dia. As cenas não me saíam da mente. Estava louco de vontade de chegar logo em casa, e compartilhar daquela história com a minha tia. Era, para mim, mais que exótico e altivo tudo aquilo: um cego, ganhando a vida daquela forma.
Mas a vida nos surpreende de vários modos...

Foi a minha tia, que tinha meio século a mais de experiência que eu, quem estava a me pôr a par dos fatos e de dar a notícia completa para mim. E não eu:
— Nenhum sofrimento desta vida, meu querido, pode ser classificável. Talvez, nem devamos chamar de sofrimento, pois ver o óbvio é a verdade mais difícil de se enxergar. Mas saiba que nada acontece por acaso. Para tudo há de se ter uma explicação! Acrescentou, ainda:  — Vou lhe contar o que aconteceu com Jorge, o camelô lá do Grotão.

E continuou:

— Em 1981, eu conheci uma amiga, chamada Lourdes, na Escola de Base onde eu trabalhava na época. Éramos merendeiras lá. Ela tinha se mudado há pouco tempo aqui para o Rio. Aos poucos eu fui sabendo da história dela. Era uma mulher nova, mais muito simples, muito boa, sabe?

Afirmei, maneando a cabeça positivamente.

— Ela tinha saído de Minas (Gerais), depois que o marido a tinha largado. Me disse que a separação tinha acontecido depois que ela e marido se desentenderam. Tinham sido arrasados por uma enchente que acabou lá com a cidade deles. E Lourdes tinha adotado uma criança sobrevivente dessa tragédia. Era Jorge. Tinha por volta de 3 anos na época, se me lembro bem do que ela me contou.

— Nossa! Reagi, espantado.

E minha tia continuava:

— E Lourdes, resolveu vir com a criança para cá. Ficou na Igreja, com a criança. Logo, arranjaram um trabalho para ela lá na escola. As pessoas tinham muita dó dela, pela história que ela contava. Isso, sem falar que Lourdes deixou o marido ir, para seguir ela e a criança adotada. Ela não gostava de falar, mas Jorge enxergava muito pouco...

Minha tia, foi me contando o desenrolar daquela amizade entre Lourdes e ela. E eu, ficava cada vez mais absorto e espantado pela narrativa. Tinha muita verdade naquilo tudo.

— Ela tinha feito de um tudo por aquela criança. Cuidou de tentar tratamentos, levava em médicos, benzedeiros, bruxos de araque. Mas nada dava certo. E conforme o tempo ia passando, a criança ia crescendo e a visão dela, encurtando.

Jorge, era um menino cego e adotado. Aquela humilde mãe ia se desvelando pelo filho e tentando fazer com que ele levasse a mais normal das vidas possíveis. Lourdes era seus olhos. Lhe contava histórias, aprendeu a escrita o método Braille, para ajudar na educação de Jorge. Lhe ensinara a ter fé, a ler o mundo pelo viés da honestidade e da humildade. Educou o filho do coração, para ser uma pessoa de bem, útil e independente.

Mas foi na adolescência que o filho da merendeira começou a enveredar pelos caminhos tortuosos da vida.

Formá-lo dentro dos princípios bíblicos e todas as coisas lhe foram acrescentadas pela fé de Lourdes, de nada adiantou para o jovem Jorge. Por mais que a amizade entre mãe e filho, e as condições impostas pela vida de ambos, acabaram por resultar em Amor, a harmonia na vida deles dependeu muito das decisões que foram tomadas durante suas jornadas.

A vida de uma pessoa com deficiência física é algo bem diferente daquilo que temos como referência. É difícil imaginar ter de tomar decisões, sem a presença das imagens. Ou de alguém para lhe auxiliar. E para Jorge, viver de forma diferente do que viviam seus muitos amigos, era algo inaceitável para ele.

— Cansei de receber a Lourdes aflita aqui em casa. Contava minha tia. — O Jorge, às vezes, ficava dois, três dias fora de casa. E ela tinha medo, porque não conhecia direito as companhias do filho. E era perigoso mesmo: um cego ainda, a quem todo mundo poderia enganar. 

E retornou, concluindo:

— É normal para um jovem sair, se distrair, se divertir. Mas isso era um dos muitos excessos que o Jorge fazia. A gente passava de noite, encontrava ele em botecos. Ele e um monte de gente; depois, descobrimos que ele tinha parado de estudar, tinha saído do trabalho. Devia ter se enfiado com gente ruim e fazer de toda a sorte de maldades por aí.

Era inacreditável: minha tia ia contando a transformação que a vida de Jorge sofria com o passar dos anos.

Por mais esforços, carinho, cuidado e amor que Lourdes dava, Jorge crescia na degeneração e na delinquência. O menino doce e prestativo da infância dura, tinha se tornado em um ser inescrupuloso, egoísta e malandro. Usava de sua deficiência para tirar vantagens. Aquilo para que Lourdes tanto lutara com tanto esmero, fazer com que o filho se tornasse um jovem normal, se realizara. Jorge se tornou "um jovem normal".

Mas os desvarios e compulsões de Jorge, imerso na vida fácil e de prazeres viciosos, fragilizaram o corpo frágil do jovem. Além da cegueira, as drogas e o álcool enfraqueceram-no o coração. Foi Lourdes que, com muito custo, o convencera procurar um hospital, para tratar a falha cardíaca. Tinha um problema congênito, e não sabia. Um tratamento até foi iniciado, mas Jorge não queria a uma vida limitada. E não aceitava de forma alguma sua condição, piorada pelos excessos que cometia, mas que não admitia.

Até que um grave desentendimento entre os dois, certa feita, fez com que aquele jovem cego embarcasse em um carro, mesmo com os rogos de protesto de sua mãe, que sentia em si, o peso do fracasso de sua criação:

— Meu filho, por Cristo renato, fique em casa! Saia desta vida. Você não está bem, "tá doente". Pelo amor de Deus, tenha pena de sua mãe. Implorava Lourdes, meio as lágrimas condoídas e longas.

— Para com isso, velha! Esbravejou, da calçada, para sua mãe no portão. — E nem vêm com essa de "meu filho", “tá” legal? — Fica você, tuas rezas, tuas chatices de merda, porque eu não "tô" afim, ok.

Do carro, os amigos assistiam aos risos, o torpe espetáculo como uma cena comum. Aquela, por vezes, era uma cena comum também em suas respectivas vidas.

— E não me espera, ouviu? Decretava Jorge, para o desespero de Lourdes.


Os vizinhos, inclusive minha tia, conforme me contava, amparavam Lourdes em sua aflição. Sua tragédia pessoal era penosa demais para seus cabelos brancos e sua expressão sofrida, resultado de anos duros de trabalho e de sucessivos infortúnios. Os conselhos, dos mais variados possíveis, davam orientações desde a mudança de ares, até a internação forçada de Jorge. Ou se tomava uma atitude, ou o pior poderia acontecer.

E não tardou para que esta triste e inevitável previsão se fizesse presente. Na noite do dia consagrado às Mães, após sucessivas madrugadas em claro, Lourdes foi surpreendida com uma triste visita. Era a polícia:

— A senhora é Lourdes dos Anjos?

Trêmula e abalada, a mãe retornou:

— O que aconteceu com meu filho, policial?

— O Jorge foi detido e está na delegacia, suspeito de um roubo e tráfico de entorpecentes.

O choque foi duro demais para Lourdes. Sua desolação se fez presente naquele instante, unido a um estampido que só ela ouviu, dentro de sua cabeça. Desmaiou ali mesmo. Era um aneurisma que explodia na fronte.

Horas depois, o mesmo soldado que se encarregara de socorrer Lourdes ao hospital, retornou ao lado de um médico para a delegacia. Foi procurar Jorge, para lhe transmitir uma breve notícia:

— Jorge, você vai ser levado conosco para o hospital. Sua mãe está lá, teve um mal súbito.

— Eu não vou. Não tenho nada a ver com isso. Dizia Jorge, indiferente com o que ouvia.

Indignado, o policial retornou:

— Como não vai? Ela morreu! Inferiu o oficial.

Dando os ombros, visivelmente transtornado, mas rindo, Jorge reiterou:


— Agora é que não vou mesmo. De que adianta? Ela já "tá" morta mesmo...

E foi aí que o médico interveio:

— Mas você tem que ir sim!

E Jorge, com olhos e expressão inflamados de ódio, questionou, balbuciando lenta e brutamente cada palavra:

— E por qual razão eu sou obrigado a ter de ir?

E o médico, sendo o mais direto possível, respondeu:

— Porque ela doou os olhos e o coração para você!

O impacto me fez gelar a alma, e levou lagrimas aos meus olhos, que teimei em segurar. Era tudo muito complicado de assimilar, principalmente pelas coisas que deviam ter acontecido, mas que minha tia teria suprimido para mim, ou até mesmo nem sabia. Na minha concepção, a sabedoria da vida foi posta nas vidas desta mãe e deste filho de uma forma clara. Mesmo quando não sabemos o que falar, a lógica encheu minha boca, que questionou à minha tia:

— Mas e aí? A senhora sabe que fim o Jorge levou?

— Pela história que você me contou hoje, e pelas características que me você me deu, o Jorge sobreviveu. Continua cego, morando no Grotão, mas pelo menos agora, segue a vida e as dificuldades de ter de trabalhar pelo seu sustento.

Vendo meu espanto, da mais doce das formas possíveis que uma tia pode dizer, ainda me disse:

— Por isso, meu filho, as percepções e pré-julgamentos, até por uma questão de ignorância da verdade, ou limitação de nossos pontos de vistas nos levam, na maioria dos erros. De tudo, não nos cabe nos culpar por nada. Enfim, só devemos amar, e de coração!

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